segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Pasta de arquivos

Andava pelo mundo distraída, com os olhos sempre fechados e o coração mais ainda, de tanto egoísmo não enxergou o que eventualmente iria perder, não se importou em saber se o amor era grande ou pequeno, se cabia só a mim ou se faria também parte de ti. Digo-te agora que já não me importa, que o amor era enorme, mas era único e exclusivamente meu. Minha pena agora é tua, não aquela que antes tanto escrevia sobre ti, mas um sentimento triste de dó. Tu que és tão bela, de longe tão perfeita, nunca há de aprender a amar, não estou dizendo que nunca amou, apenas digo com convicção que tu amas errado, como nos filmes, um tipo de amor danificado.Hoje uma das flores que fiz pra ti me deu alguém pra amar, sempre gostei de comparar as mulheres com as flores e com as estrelas. O problema é que no teu céu existem muitas estrelas, mas nenhuma brilha como deveria pois não te amam, nunca amaram. E no meu jardim brota-se uma flor por ano, apenas uma por quem eu tenho que zelar, e se falho espero pacientemente pelo ano seguinte chegar e me trazer grama, sol e água.Por muitas vezes eu me pegava falando a frase “tudo por causa de...” Passei de fato muito tempo procurando a quem culpar. Imaginava os lugares que abrigaram nossos corpos sedentos, as circunstancias tediosas que nos fizeram cometer o primeiro erro, o primeiro beijo, cheguei até a amaldiçoar as camas em que juntos nos deitamos, sempre com o mesmo pensamento: “Tudo por causa de...”.Por ela agora eu estou a pensar no “Tudo graças...” Gracias, agradecimento emocionado por estar no lugar certo e na hora certa, por ter resolvido sair de casa em uma sexta-feira chuvosa, por ter parado naquela casa diferente de um bairro tão distante. Digo gracias ao sarau, a poesia, ao café forte e amargo que ela preparou pra estender minha noite, digo gracias por ouvir aquela voz suave me chamando de poeta, sorrindo diante ao meu nervosismo, estranhamente me sinto leve pela primeira vez em um ano, talvez sejam as borboletas do meu estomago, uma sensação que não poderia ser mais inédita em sua familiaridade. Sinto que talvez a escolha tenha sido certa, ela eu não teria que salvar, nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Nela mora a coragem e a nobreza de um rei, a beleza e a grandiosidade de uma rainha.Por ela também não dormi, tive vergonha quando ela me pediu pra ler minha pasta de arquivos, não havia nem uma hora que ela tinha lido pra mim um dos seus poemas, seguidos de vários outros na sacada alta e escura do seu amigo. Eu sabia que os poemas dela eram bem mais bonitos do que os meus, as folhas que ela leu eram pra mim tão lindas quanto ela, que era linda, linda demais. Tanta lindeza que me fez ter vontade de cantarolar Caetano Veloso pelos cantos da cidade, mas como sempre tive medo daquela perfeição em forma de mulher e fui fugir, me escondi sozinha embaixo de uma coberta porque sabia que ela leria minhas folhas em voz alta, tive medo que não gostassem, ou ainda pior que rissem de mim.Me encolhi na cama do quarto ao lado, enquanto ouvia a sua voz doce declamar um poema que eu tinha escrito pra outra flor, uma flor distante e murcha que não era tão doce quanto eu pensava. O tempo nunca passou mais devagar, as batidas do meu coração acompanhavam a entonação da voz dela. Quando eu estava prestes a explodir, ouvi uma salva de palmas vindo da sala, eram músicos, intelectuais e jovens estudantes elogiando o que eu tinha escrito.Naquele instante meu poema que falava de quermesses não pertencia mais as minhas antigas, tomou pra mim um outro sentido pois não parecia triste. Pela primeira vez eu mostrava um poema pra ser julgado e no momento de glória ele não estava triste, nem melancólico, tornou-se por outra voz algo completamente distante de mágoas ou saudades.Logo vi que meu poema, minha quermesse, meus domingos e meu coração teriam uma nova bela dona, bastava eu criar coragem, caminhar até a sala e conquistar aquele antídoto. Quando abri a porta, a vi sentada no chão em pose de índio, as pernas cruzadas e desnudas mostravam toda sua sensualidade, um sorriso apaixonante estampado na face lhe dava um ar de ingenuidade, uma mistura fatal de tudo que eu sempre quis ver em outra mulher, olhou pra mim e disse:- É lindo, a simplicidade é linda.Quis responder que era dela, que naquela altura do campeonato tudo que era meu ou que viria a ser meu, era também dela. Mas eu gaguejei um “obrigada” e fui até a cozinha me entorpecer de vinho, ela foi atrás e de tanto nervosismos eu quebrei a rolha da garrafa, que rolou pra trás da geladeira após ter ricocheteado na pia e na barriga escultural da nova flor. Ela riu e me disse pra ter calma, mas eu sentia fortes palpitações, mãos geladas e boca seca, meros sintomas da doença que se pega feito resfriado, de uma hora pra outra, sem ter cura imediata, aquela doença que é se apaixonar.Esta só me contaminou uma vez, mas eu ainda lembrava como era, as pernas bambas, a dor no estomago, a falta de sono. Lembrava de toda teoria, mas na pratica tinha me esquecido o quanto era bom e ruim ao mesmo tempo. Ela me pediu pra ler o resto e nós nos sentamos no sofá, a cada virada de página ela falava algo construtivo, e das vezes que gostava muito apenas sorria, como se tivesse certeza de que não precisava falar nada.Naquela noite eu senti que a conhecia a vida toda, como se só o tempo tivesse atrasado aquele encontro simetricamente perfeito, de duas cabeças e almas que pensam e sentem da mesma maneira, e os conceitos todos iguais e as músicas todas parecidas. Ao som da voz dela meus arquivos não contavam mais sobre os meus antigos sofrimentos, parecia que eu tinha escrito tudo aquilo só pra ela ler pra mim, como se o conteúdo não tivesse a menor importância, tudo que eu precisava era ouvir a sua voz.Mas as folhas acabaram e no final ela viu as fotos, malditas fotos que eu teimava em carregar. Reconheceu “por causa de...”discrições que a última foto era a “outra” e então compreendeu que meu jardim não era assim tão inabitado, afastamo-nos e ela olhou pra mim perguntando o que tinha acontecido, por que tinha terminado, mas eu não sabia responder, talvez por causa dessa hesitação comum, sem importância, minha flor mesmo sendo tão inteligente interpretou tudo errado e por culpa da foto fui embora de mãos vazias, mas minha cabeça estava cheia, eu sabia que estava pronta pra podar o meu jardim, arrancar de lá tudo que pra mim era ruim, mas teria que convencer a nova dama de que eu era capaz, de que aquelas folhas eram apenas palavras e nada mais.No caminho de volta pra casa não consegui dormir, gastei aquelas R$ 5,10 e aquela 1:30 pensando em como reverteria aquela cena. Em como retornaria pra vê-la se nem ao menos sabia onde nos encontramos, não anotei nome, nem telefone, nem endereço. Fiquei contando com a sorte, afinal sou um joguete do destino, um Romeu apaixonado e paciente que teria que esperar pelo próximo sarau, pra que suas folhas finalmente se deitassem junto aos novos amantes.
M. Utida