segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Pasta de arquivos

Andava pelo mundo distraída, com os olhos sempre fechados e o coração mais ainda, de tanto egoísmo não enxergou o que eventualmente iria perder, não se importou em saber se o amor era grande ou pequeno, se cabia só a mim ou se faria também parte de ti. Digo-te agora que já não me importa, que o amor era enorme, mas era único e exclusivamente meu. Minha pena agora é tua, não aquela que antes tanto escrevia sobre ti, mas um sentimento triste de dó. Tu que és tão bela, de longe tão perfeita, nunca há de aprender a amar, não estou dizendo que nunca amou, apenas digo com convicção que tu amas errado, como nos filmes, um tipo de amor danificado.Hoje uma das flores que fiz pra ti me deu alguém pra amar, sempre gostei de comparar as mulheres com as flores e com as estrelas. O problema é que no teu céu existem muitas estrelas, mas nenhuma brilha como deveria pois não te amam, nunca amaram. E no meu jardim brota-se uma flor por ano, apenas uma por quem eu tenho que zelar, e se falho espero pacientemente pelo ano seguinte chegar e me trazer grama, sol e água.Por muitas vezes eu me pegava falando a frase “tudo por causa de...” Passei de fato muito tempo procurando a quem culpar. Imaginava os lugares que abrigaram nossos corpos sedentos, as circunstancias tediosas que nos fizeram cometer o primeiro erro, o primeiro beijo, cheguei até a amaldiçoar as camas em que juntos nos deitamos, sempre com o mesmo pensamento: “Tudo por causa de...”.Por ela agora eu estou a pensar no “Tudo graças...” Gracias, agradecimento emocionado por estar no lugar certo e na hora certa, por ter resolvido sair de casa em uma sexta-feira chuvosa, por ter parado naquela casa diferente de um bairro tão distante. Digo gracias ao sarau, a poesia, ao café forte e amargo que ela preparou pra estender minha noite, digo gracias por ouvir aquela voz suave me chamando de poeta, sorrindo diante ao meu nervosismo, estranhamente me sinto leve pela primeira vez em um ano, talvez sejam as borboletas do meu estomago, uma sensação que não poderia ser mais inédita em sua familiaridade. Sinto que talvez a escolha tenha sido certa, ela eu não teria que salvar, nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Nela mora a coragem e a nobreza de um rei, a beleza e a grandiosidade de uma rainha.Por ela também não dormi, tive vergonha quando ela me pediu pra ler minha pasta de arquivos, não havia nem uma hora que ela tinha lido pra mim um dos seus poemas, seguidos de vários outros na sacada alta e escura do seu amigo. Eu sabia que os poemas dela eram bem mais bonitos do que os meus, as folhas que ela leu eram pra mim tão lindas quanto ela, que era linda, linda demais. Tanta lindeza que me fez ter vontade de cantarolar Caetano Veloso pelos cantos da cidade, mas como sempre tive medo daquela perfeição em forma de mulher e fui fugir, me escondi sozinha embaixo de uma coberta porque sabia que ela leria minhas folhas em voz alta, tive medo que não gostassem, ou ainda pior que rissem de mim.Me encolhi na cama do quarto ao lado, enquanto ouvia a sua voz doce declamar um poema que eu tinha escrito pra outra flor, uma flor distante e murcha que não era tão doce quanto eu pensava. O tempo nunca passou mais devagar, as batidas do meu coração acompanhavam a entonação da voz dela. Quando eu estava prestes a explodir, ouvi uma salva de palmas vindo da sala, eram músicos, intelectuais e jovens estudantes elogiando o que eu tinha escrito.Naquele instante meu poema que falava de quermesses não pertencia mais as minhas antigas, tomou pra mim um outro sentido pois não parecia triste. Pela primeira vez eu mostrava um poema pra ser julgado e no momento de glória ele não estava triste, nem melancólico, tornou-se por outra voz algo completamente distante de mágoas ou saudades.Logo vi que meu poema, minha quermesse, meus domingos e meu coração teriam uma nova bela dona, bastava eu criar coragem, caminhar até a sala e conquistar aquele antídoto. Quando abri a porta, a vi sentada no chão em pose de índio, as pernas cruzadas e desnudas mostravam toda sua sensualidade, um sorriso apaixonante estampado na face lhe dava um ar de ingenuidade, uma mistura fatal de tudo que eu sempre quis ver em outra mulher, olhou pra mim e disse:- É lindo, a simplicidade é linda.Quis responder que era dela, que naquela altura do campeonato tudo que era meu ou que viria a ser meu, era também dela. Mas eu gaguejei um “obrigada” e fui até a cozinha me entorpecer de vinho, ela foi atrás e de tanto nervosismos eu quebrei a rolha da garrafa, que rolou pra trás da geladeira após ter ricocheteado na pia e na barriga escultural da nova flor. Ela riu e me disse pra ter calma, mas eu sentia fortes palpitações, mãos geladas e boca seca, meros sintomas da doença que se pega feito resfriado, de uma hora pra outra, sem ter cura imediata, aquela doença que é se apaixonar.Esta só me contaminou uma vez, mas eu ainda lembrava como era, as pernas bambas, a dor no estomago, a falta de sono. Lembrava de toda teoria, mas na pratica tinha me esquecido o quanto era bom e ruim ao mesmo tempo. Ela me pediu pra ler o resto e nós nos sentamos no sofá, a cada virada de página ela falava algo construtivo, e das vezes que gostava muito apenas sorria, como se tivesse certeza de que não precisava falar nada.Naquela noite eu senti que a conhecia a vida toda, como se só o tempo tivesse atrasado aquele encontro simetricamente perfeito, de duas cabeças e almas que pensam e sentem da mesma maneira, e os conceitos todos iguais e as músicas todas parecidas. Ao som da voz dela meus arquivos não contavam mais sobre os meus antigos sofrimentos, parecia que eu tinha escrito tudo aquilo só pra ela ler pra mim, como se o conteúdo não tivesse a menor importância, tudo que eu precisava era ouvir a sua voz.Mas as folhas acabaram e no final ela viu as fotos, malditas fotos que eu teimava em carregar. Reconheceu “por causa de...”discrições que a última foto era a “outra” e então compreendeu que meu jardim não era assim tão inabitado, afastamo-nos e ela olhou pra mim perguntando o que tinha acontecido, por que tinha terminado, mas eu não sabia responder, talvez por causa dessa hesitação comum, sem importância, minha flor mesmo sendo tão inteligente interpretou tudo errado e por culpa da foto fui embora de mãos vazias, mas minha cabeça estava cheia, eu sabia que estava pronta pra podar o meu jardim, arrancar de lá tudo que pra mim era ruim, mas teria que convencer a nova dama de que eu era capaz, de que aquelas folhas eram apenas palavras e nada mais.No caminho de volta pra casa não consegui dormir, gastei aquelas R$ 5,10 e aquela 1:30 pensando em como reverteria aquela cena. Em como retornaria pra vê-la se nem ao menos sabia onde nos encontramos, não anotei nome, nem telefone, nem endereço. Fiquei contando com a sorte, afinal sou um joguete do destino, um Romeu apaixonado e paciente que teria que esperar pelo próximo sarau, pra que suas folhas finalmente se deitassem junto aos novos amantes.
M. Utida

terça-feira, 19 de maio de 2009

My Father's Gun

Uma gaita e uma camiseta velha, foi tudo o que sobrou do meu pai, um eu roubei porque ele nunca nem me emprestava, nunca me deixou chegar perto da sua gaita antiga. Eu tinha poucas lembranças boas com ele, uma delas era quando nós íamos acampar na praia e ele tocava Mr. Bojangles do lado de fora da barraca enquanto eu tentava dormir... Lembro também que papai sempre tentava enfeitar o mundo pra mim, contava suas histórias de monstros e cavaleiros, me ensinava a tocar seus clássicos naquela mesma gaita velha de sempre, nessa época eu ainda tinha medo de chuva e no mundo do meu pai trovão virava sofás sendo arrastados pelo céu, os relâmpagos eram holofotes que chamavam pelo batman ou até por ele mesmo que nesses dias era o meu super herói.
Não importa o que acontecesse nós ainda teriamos o Bob Dylan, não é pai? Adivinha só... aquele show super esperado dele vai acontecer em breve e você não vai me levar e sabe porque pai? porque o senhor agora deve estar chapado e nem deve saber que dia é hoje, mesmo se soubesse não teria dinheiro pra me levar afinal gasta tudo com aquelas putas de industrial, o senhor sabe que isso nunca me incomodou, muito pelo contrário. secretamente desejava que você comesse cada vez mais, quem sabe um dia desses sem camisinha, quem sabe pegasse uma AIDS ou coisa parecida, podia até ser com uma seringa contaminada, então o senhor-meu-ex-herói morreria com o veneno da sua ex-atual-heroína. Eu acho papai que te odiaria menos se você morresse logo, o senhor não acha injusto ficar ai vegetando e dando trabalho pros outros? aposto que nem buscar suas merdas na boca o senhor vai, não é mesmo? Nada disso, não és homem o suficiente, eu vou papai, tenho ido quase todo dia, acho que comecei a ignorar a ética e honra que o vovô tentou me ensinar um dia.
Até fumamos o mesmo cigarro pai, se bobiar até a mesma quantidade, temos o mesmo gosto por mulheres loucas e complicadas e acredito que por homens nosso gosto também seja igual, que nossos olhos são iguais todo mundo sabe, mas o que o senhor não sabe é que o meu romantismo-clichê é seu, sempre foi... E toda a violência, todo o rancor e o ódio em mim são seus papai, invariavelmente sou sua, toda sua pra sempre.
Hoje eu vesti minha camiseta velha, aquela que o senhor fez pra mim pai, o senhor se lembra do "kill bill"? em quantas vezes asisstimos juntos esse filme? Pensei até que seria mais digno puxar o gatilho e acabar com esse sofrimento de uma vez por todas, mas eu ainda tenho a vida inteira papai, e talvez essa seja a única diferença entre nós dois, não estragaria meu futuro lhe concedendo a eutanasia, não papai, o senhor que viva na vergonha e fique sabendo que ninguém morre por amor como você um dia me ensinou, o amor serve pra construir e o senhor não constriu nada, vai morrer pela sua luxuria e não há beleza nisso papai, sua morte não vai ensinar nada pra ninguém e eu não acredito mais nos teus contos e nas tuas histórias de amor.
Ah papai, eu sempre vou até a porta da sua casa, só até a porta porque o senhor tirou minhas chaves de mim no mesmo dia que disse que eu não era mais sua filha, lembra? não faz tanto tempo assim... e eu vou porque ainda te amo a distancia e sei que quando seu corpo ceder ninguém vai me avisar, eu vou pra checar se o senhor ainda tem respirado e hoje eu vesti aquela camiseta papai e fui até sua casa, a sua mãe me disse que o senhor esta no hospital, que bebeu junto com os seus remédios, covardia papai, não mereces minha visita.

M.Utida

O Bife

Queria que ela realmente tivesse cortado os pulsos, tomado toneladas de analgésicos, queria que ela se enforcasse ou se jogasse pela janela. Só assim ficar batendo, esperando e ajoelhando na porta do banheiro teria sido válido pra alguma coisa, caso contrário tudo aquilo seria ainda mais ridículo, mais drama por nada.
Mamãe estava certa quando disse que em breve Marilia ia começar a se parecer cada vez mais com a mãe dela. Segundo o complexo de Édipo, a sina de Marilia seria se tornar igual a minha e pro meu azar ela se tornou um pouco de cada. Mamãe não era suicida e até onde eu sei minha sogra também não.
Eu desconfiava que aquela encenação dramática toda não passava de frescura, mas de qualquer forma decidi não arriscar e chamei a razão de todo aquele choro pra me ajudar naquela situação, e por situação eu digo que não sabia se ela já estava morta. Se estivesse eu saberia o que fazer, arrombaria aquela porta, a colocaria no meu colo e heroicamente ligaria pra meio mundo avisando que Marilia tinha morrido de amor. Não por mim, é claro que não, desconfio que de tanto egoísmo Marilia morreria por ela mesma e convenceria a todos que tinha feito aquilo por falta de amor.
Naquele dia pela primeira vez eu tinha acordado cedo, limpado a casa, busquei seu almoço, ela andava meio doente e eu como sempre tentei cuidar dela com todo o zelo e carinho do mundo, mas Marilia não me deixava ajuda-la, continuei persistindo na tentativa de agrada-la e quase saí no tapa com os operários que também queriam bife ao invés de bolinho de carne, voltei pra casa e tentei acorda-la com beijinhos e piadas sobre a pseudo briga de boteco, ela não sorriu.
Sentei no computador e perdi a fome por culpa da falta de sorrisos, pra falar a verdade já nem me lembrava quando tinha sido a última vez que Marilia sorrira pra mim. Concentrado nos meus e-mails nem percebi que ela tinha descoberto minha mentira, Marilia levantou-se bruscamente, empurrou minha cadeira e se trancou no banheiro. Na primeira meia hora continuei ouvindo seus soluços e quando eles pararam comecei a me preocupar.
Fiquei imaginando o sangue saindo das suas veias, sujando o tapete, manchando as minhas roupas. Chamei a mãe dela pra ajudar e enquanto a esperava chorei lembrando os planos que eu tinha pra Marilia, em nenhum deles estava incluso uma tentativa de suicídio. Marilia disse que só sairia do banheiro quando eu não estivesse em casa, peguei meus cigarros, meus cadernos, algumas músicas e fui pro parque.
No caminho pensei no bife que comprei pro almoço dela gelando em cima da pia, no quanto eu estava ridículo saindo de pijama, no medo que senti de qualquer ira que pudesse vir a me abater. Pensei nos dias em que ela me fez feliz e no quanto eu ainda gostava dela. Sobravam-me cigarros e histórias pra contar, mas meu isqueiro tinha ficado em cima da mesa da sala, minhas lapiseiras também. Sentei no lago e por sorte um pescador qualquer tinha um lápis pra me emprestar.
Enquanto escrevo isso penso na conversa das duas, em como me faz mal ver Marilia sofrer, em como ela consegue ser tão desconsiderada, pensei enfim naquele maldito bife gelando em cima da mesa e no quanto eu chegaria molhado em casa, porque a chuva tinha acabado de começar e já molhava meus papéis em branco.

M. Utida

Macarrão de atum

A festa acabou, o tapete ficou estirado e sujo na grama do meu jardim, ela foi embora de tardezinha quando o sol se pôs porque tinha algum lugar melhor pra ir, alguém melhor pra encontrar, diferente de mim é claro que só tinha o vinho; o pó; a erva e na verdade só precisava dela, drogada ou não, mijando enquanto os outros a filmavam, vomitando enquanto eu tentava dormir, mentindo e iludindo os outros por brincadeira, desafinando na gaita e se achando a maioral... eu precisava dela, de todos seus defeitos e imperfeições, de todos os erros grotescos de gramática dela - se eu não fosse tão arrogante me fingiria de burra pra ela se sobressair -, queria decifrar cada ruga em cada preocupação nas linhas do rosto meio-judeu-meio-italiano dela que mesmo desafinando toda a música do Bob Dylan ainda continuava me encantando, se o violino está para a ópera, a gaita está para o folk enquanto ela estava tocando pra mim.
Minha hora chegou, a dela também... tinha que voltar pra casa porque ela tinha uma casa e não podia ficar viajando pra sempre comigo, ela se foi e me deixou sozinha com um bando de restos e cacos pra limpar.
Naquele dia ela abriu os olhos do meu lado, aqueles olhos de ressaca passaram lentamente curiosos pelas paredes do meu quarto, meio que indignada e sem acreditar que estava ali porque ninguém conseguiu acreditar, era surreal a idéia dela dormindo na minha casa mesmo que sem nenhuma intenção, aliás o plano não podia ser mais inocente: pizza e vinho... A pizza foi devorada numa larica feroz e ficou jogada no meio da sala enquanto a galera viajava no sofá e o vinho sobrou pro dia seguinte, pra embebedar meu domingo com um sentimento que há tempos não me alcançava, acho que foi charmoso pra porra e essa é a boa da verdade... eu, mariana f. 16 anos, morando sozinha "downtown", ultrapassando e desenhando sonhos do mundo inteiro; tentando mostrar pra ela o bucolismo da cidade grande, a beleza alta do meu muro, minha infinita insensatez, idéias malucas e comentários babacas, de qualquer forma ela sempre me achou uma "otária" e não tinha nenhum charme em esticar tapetes branquinhos no barro pra se embebedar de vinho as 11 da manhã. não tem graça até porque o céu estava limpo e nem brincamos de descobrir desenhos em nuvens.
Deitada la embaixo pensei sobre a poeira que só é possível ver a luz do sol, eu não fechei os olhos, vi todas aquelas partículas de poluição e pêlos brancos de tapete grudando nela, eu, o vinho e a poeira não fechamos os olhos e chegamos a conclusão de que ela estava tão louca que não se importaria com a nossa sujeira, nem com as musicas de dor de corno que eu escolhi pra gente ouvir, não se importaria em voltar pra ca quando quisesse, não ia se lembrar que tinha dado risada comigo, nem se lembraria do meu esforço pra agrada-la e não perdoaria m
Minha próxima mancada nem que se eu ajoelhasse um milhão de vezes e não só uma como eu fiz, nem que se eu ajoelhasse nos milhos rosas que ela cuspiu a noite, senti que essa era a última chance de fazer as coisas darem certo e o medo do contrário me abateu imensa e desesperadamente, medo de fazer ou falar qualquer coisa que a fizesse me odiar de novo, pensei em muitas coisas, mas ela se levantou, bateu a poeira e os pêlos da sua camiseta, fez uma limonada, um macarrão de atum, umas batatas fritas e eu fiquei com o vinho e com a poeira pensando se ela teria vontade de voltar ou se sentiria vontade de ficar...
De repente eu vi que ela se importou com a nossa sujeira e com o cheiro de cigarro que ficou nas roupas dela, emprestei meu perfume que um dia ela disse tanto gostar e ela se foi cheirando a mim enquanto eu cheira no espelho imundo do banheiro, com uma nota de dois o pouco tanto de pó que me cabia dela.
M. Utida

Dezembro despedaçado

Se as pessoas realmente são somas de seus detalhes, como poderíamos tentar substitui-las?Não, nenhuma outra garota segura o cigarro como você o faz, nem olha no relógio da mesma maneira que você faz e ninguém nunca vai ser tão encantador quanto você tentar ser, mesmo depois de tanto tempo ainda existem coisas que não mudam nunca... O seu jeito de falar... E o meu é claro, o meu sempre vacilando, o meu continuando a evitar as palavras que não saem pela boca, mas que jorram nos papéis. E os seus olhos... Os mesmos olhos com diferentes olhares, e os meus? Meu Deus os meus... Por que tem que ser sempre tão vago? Pra que tanta covardia?Eu to cansada de pedir desculpas, de ser a estranha da noite, eu peço desculpas por pedir tantas desculpas, e agora eu sinto muito se eu não posso ser um tapa buraco, sinto muito pela possibilidade de você não saber tudo aquilo que todo mundo esta tão cansado de saber, sinto por não ter tido paciência pra ouvir minha melhor amiga desabar do meu lado, mas entenda eu também desabei naquela noite, eu caí com a minha maçã iluminada, como se eu fosse James e o pêssego gigante e se eu contasse tudo que eu vi, iriam me comparar com Edward Bloom, mas não, eu não pesquei um peixe de 100 kilos...Então voltemos a questão da melhor amiga, eu adoro quando ela acorda cedo e vai embora, mas nunca sem me cutucar sutilmente e me beijar as bochechas pra se despedir, e eu adoro a maneira como apesar da minha fantasia de bancário, da minha meia marrom - pra combinar com o colete -, do meu shorts branco broxante e da minha camisa azul toda amassada ela continua tentando me encorajar e me aconselhar, e eu sinto muito, muito mesmo por não deixar, por nunca me abrir e nem te escutar.Naquele sábado a noite eu queria gritar, mas tudo que eu fiz foi pedir por favor. Eu queria ter dito a verdade... Das minhas incertezas que só passaram a ser certas quando eu a vi mais uma vez, mas eu só sentei na varanda tentando disfarçar os meus suspiros, como se não tivesse sido em vão... tentei ser indiferente, fingi que não me importava, e mais uma vez como se não tivesse sido em vão eu fiz listas de músicas que eu queria ouvir durante a noite só pra chegar a conclusão de que certas coisas nunca mudam. Que eu só quero que ela seja feliz apesar de mim, que eu queria vomitar, socar, estapear a cara de quem magoou a minha menina, nem que depois eu tivesse que implorar de joelhos pra que não o fizessem de novo, pra que se importassem com ela pelo menos um pouco do quanto eu me importava, do quanto sempre me importei, e provavelmente nunca vou deixar de me importar, apesar de mim eu só queria ver ela sorrir e sentir que tudo o que tinha acontecido era certo, mas quando se trata de relacionamentos, deveríamos ser sinceros ou nos esconder nas curvas sombrias do silêncio? Como ja diria Ben Gibbard: "Son, fear is the heart of love".
M. Utida

Insight

A maioria das pessoas nega o amor, muitas vezes pelo erro de achar que ainda são jovens, que eventualmente vão conhecer outros maiores e melhores, como vagões de trens aonde pouco importa qual tenha sido escolhido, nós sempre acabamos pensando:- Aposto que o do lado está mais vazio, ventilado, agradável..Eu acho que todos nós perdemos oportunidades de viver grandes amores por pura insegurança, medo e literalmente estupidez. Dessas três categorias acredito ter sido vítima das três e ao mesmo tempo! Ou na verdade o meu vagão de trem, a minha oportunidade ainda não chegou, caso tenha chegado eu posso até me prevenir, pensar sobre aonde exatamente que eu devia ter escolhido sentar, mas ao invés disso pulei fora num piscar de olhos. A insegurança por achar que não poderia estar a altura daquela minha velha rosa de cirrose, a estupidez por não ter imaginado uma alternativa a tempo, e é claro o medo... Ah o medo, como se para mim a vida fosse frágil. Isso é bobeira, desculpa pra não se jogar, pretexto pra fugir, medo que resultava sempre na intenção de me esconder, de me privar.Mas hoje não, hoje a vida me deu um caldo, me derrubou no chão e me abraçou por inteira e eu acordei querendo dizer que amava todo mundo, o que me fez pensar que talvez eu tenha uma cota de amor dentro de mim, e que tudo que eu precisava era distribui-lo um pouco melhor, inclusive pra mim mesma. Outra coisa que eu percebi foi que esperei tempo demais pra que o meu sonho voltasse, quando na verdade o problema é que eu estava sonhando errado, e percebi que parar de viver pra ficar apenas sonhando e idealizando qualquer rosa seja com cirrose ou não é fácil, o difícil mesmo é continuar vivendo, conhecer novos amores, se divertir e existir sem medo algum e ainda conseguir ao mesmo tempo sempre guardar e esperar por aquela rosa, por aquele vagão de trem ou por aquele festival que acontece em época de chuva. O caso é que quando me perguntavam o que eu achava desse troço maluco de amor eu não sabia responder, até hoje não sei responder, parece que de fato essas coisas não se explicam. Amor não é para os fracos, tem gente que não agüenta a dose, não se prepara pro baque que é saber de tudo e ao mesmo tempo não ter a menor idéia de coisa alguma, no meio de tantas dúvidas eu não paro de me perguntar como eu pude não reparar antes que você era bem mais do que eu conseguia sentir? Você gostava de Chico, mas eu não sabia, você amou aquela lá como se fosse a última e foi, mas eu não sabia, e você nunca se importou, mas eu nem imaginava... Você era linda, mas eu não sabia te olhar, como eu pude amar tanto alguém que conheci tão pouco? Nelson Rodrigues manda outro roteiro pra essa minha rodada, decreta que sábado vou estar na estação de trem as seis da tarde, esperando meu amor passar voltando pra casa em uma nova temporada...
M. Utida

17 Anos

Viver codificando imagens em letras foi tudo que eu aprendi, não digo isso apenas pra chocar ou causar piedade, porem quanto mais sei do mundo menos sei de mim mesma.Ando sempre atrasada, uns dias culpo o trânsito, nos outros culpo suicídios no metrô. Suicídios que nunca de fato presenciei, mas vira e mexe penso nisso, olhando a paisagem mórbida da janela do vagão imagino inúteis se atirando da linha amarela só pra atrapalhar o progresso, atrasar os trabalhadores, prender a atenção dos estudantes, todos se tornariam nessa ocasião expectadores da falta alheia de ganância e ambição.Possivelmente não acrescentarei nada para o mundo, nem ao menos 10 minutos de “frisson” geral como faria meu amigo suicida imaginário, mas também acho que não é preciso, a essa altura estaria feliz em apenas viver, mesmo que sem registros, mesmo que sem amores.Não digo que isso não seria triste, porque seria trágico ficar permanentemente desapaixonada pelo mundo, mil vezes o sofrer do que o nada sentir, culpa dos dezesseis que me impuseram essa visão absurdamente romântica da vida.Culpar o romance também é algo que sempre me confortou muito, como diria meu companheiro Albert:Nessa vida é preciso ser macho demais pra se permitir chorar por uma mulher.Eu e meus dezesseis já choramos e muito, não que eu me arrependa disso, pelo contrário... Mas contra a minha vontade meus olhos já secaram e a admiração que antes eu alimentava com tanto carinho morreu de fome, meus planos se distorceram em segundos e aqueles que eu mais amei se tornaram por ausência minha tão desprezíveis quanto aqueles que eu odiei.E com esses dezessete chegando, com essa minha cabeça fervendo de tanto questionar a mim mesmo acabo deixando os parágrafos e as teorias de lado. Talvez seja assim que eu me encare: um bando de idéias, sonhos e alucinações esperando pelo dia de serem compreendidos.A verdade é que não importa se são os dezoito, os dezenove ou até mesmo os vinte anos que eu um dia pretendo fazer, a verdade é que eu vou ser sempre igual, o mesmo cara decente com cinqüenta ou trinta, daqueles que nada conquistam de muito grande na vida porque nem precisam disso, que planejam com cautela cada detalhe de como vão transformar um salário de fome em uma casa com gramado, cachorros e filhos, muitos filhos... Todos parecidos com a mulher que encontrarei um dia desses e amarei pra sempre com a fidelidade de um padre e a paciência de um monge.Sou só um cara prestes a fazer dezessete e que antes dos vinte pretende conhecer o mundo inteiro com um violão nas costas, o tipo que não liga pra futilidades físicas, que tentou, mas não gosta de pagode ou qualquer coisa que tenha a ver com aquilo que todo mundo gosta, e invariavelmente já não pode mais negar que certos movimentos parecem vazios. Essa é a minha palavra preferida: vazio.Não sei bem o que quero, mas sei exatamente aquilo que nunca hei de querer, mil vezes minhas esquisitices ao vazio dos comuns, mil vezes meus incensos, leituras de poesias e planos artisticamente fracassados do que ser um cara normal, do tipo que ao fazer o tal dos dezessete não tinha nenhum sonho além de ganhar um carro pra encher de piriguetes, vira-latas e desclassificadasQuerer mais é lutar mais, quero tocar em uma banda de rock, quero ver as cores dos Stradivarius, criar mais, rir mais, interpretar muito mais, montar um grupo de teatro, quero escrever sobre personagens fictícios, parar de dialogar comigo mesmo porque por mais interessante que eu seja e apesar dos dezessete eu não sou o umbigo do mundo, mas principalmente quero ter forças pra nunca deixar que mudem meu coração ou deixar que digam que meus sonhos são besteiras, desejo ser eternamente mutante. Nesse décimo-sétimo aniversário tudo o que peço é pra ser do tamanho daquilo que vejo.
M. Utida

Rascunhos

Penso que seja melhor deixar avisado logo de ínicio que as minhas palavras são só rascunhos, esboços do que poderiam ter sido se eu não tivesse perdido conjunções, confundido tempo, verbos e preposições. Ah sim, me perdi gramaticalmente... culpa dos domingos.Que atire a primeira pedra qualquer neurótico feito eu que não elegeu um dia da semana pra se torturar de saudade, aquele em que tudo aconteceu, o "dia simbólico", a putaria toda de pensar:- Há X dias em tal hora, em um lugar Y...O meu dia Z era domingo, eleito pela massa o mais naturalmente depressivo por N motivos como Faustão, futebol, almoço em família, ressaca geral, índice de assaltos, missas, restaurantes lotados e é claro sem esquecer os grandes shows e festinhas fracassadas que só acontecem nesse dia tão especial, que por coincidência ou não ainda é o meu preferido.Domingo, nome de banda, acordo sempre com teorias ligadas à ela de alguma maneira, o dia em que a conheci, que peedi pra ela ser minha, o dia que ela decidiu se "desprender" de mim. Tudo nela é domingo, eu sou dela, sou a missa dos arrependimentos, eu sou domingo e ele chegou mais uma vez e me arrastou pra outro show fracassado, fiz o que sempre faço, o que todo romântico neurótico faz, andei pela multidão porque continuava não sendo a melhor, mas era ainda a única disposta a fazer tudo aquilo... Ainda, outra teoria ingrata, tudo em mim "é ainda". Sou domingo, sou dela, busco perdão... ainda.Não que eu quisesse tudo aquilo, a procura em si era quase inconsciente, não tinha idéia se pretendia mesmo ir, eu achava que ia, e, eu fui com o coração na mão e uma rosa imaginária na outra, a encontrei quando o cansaço e a desesperança ja tinham por fim me esgotado e me feito forjar uma desistência qualquer, foi nesse instante que meus olhos se cruzaram com os dela na maias doce coincidência que pode coincidir com um domingo. No momento em que me viu correu ao meu encontro e o fez sorrindo, e eu não estou mentindo meu amigo, porque ela sorriu pra mim com uma cara de quem pensa: "Puta que pariu, vê se me erra...", mas sorriu dissimulada e correu ao meu encontro, eu ingênua pensei que era felicidade em me ver, queria saber agora como descrever aquele abraço, as minhas mãos tremiam, um milênio em três segundos.Há quem diga até que eu não retribui aquele carinho, que travei e não a abracei de volta e quem fala anda certo.Ela sabe que não foi falta de vontade, quando consegui entender o que se passava, que era um abraço..., quando senti o corpo dela pressionado contra o meu e tive intenção de retribuir já não dava mais tempo, ela se soltou dos meus braços não envolventes e caminhou pra longe de mim, tão logo seu antigo perfume invadiu meus olhos, ouvidos, pegou nas minhas mãos e ficou nas minhas mangas tão logo foi embora junto com ela, tão rápido e significante quanto a corrida dela ao meu encontro.Três segundos, minha eternidade entretida nos braços de outra, uma que soube retribuir, loira, linda e leviana que ela abraçou por mais vezes, por mais tempo... Talvez nem fosse assim bem o que se diz tradicionalmente linda, mas acho mesmo que até "Queen Latifah" aos meus olhos seria uma diva se estivesse ao lado dela, e eu fico pensando como teria sido se eu tivesse me perdido naquele abraço, mas a única coisa que eu perdi naquele dia foi minha dignidade - que venhamos e convenhamos - eu nunca tive, eu domingo sai correndo, me atrapalhei de novo e pisei na toalha da sua melhor amiga que nunca simpatizou comigo, então ajoelhei e limpei com meu suéter por culpa de um complexo de inferioridade que sempre acabou comigo, eu domingo limparia barro com as minhas camisas, eu-cavalheiro-gentil-imbecil do século XVIII a seu dispor em qualquer dia da semana.

M.Utida

Oposto

Ela não soube lidar com o meu perfeccionismo, se chegasse atrasada eu virava a cara, se não me beijasse da maneira como eu gostava era castigada com as minhas amarguras, se me pedisse permissão eu a apedrejaria por odiar a submissão dela.Pensar que eu ainda a teria se soubesse ter sido mais flexível quase consegue me matar, e imaginar ela com outras me deixa doente como se alguém tivesse sugado todo o oxigênio da sala, ou, cortado de leve alguma parte sensível do meu corpo, o chão desaparecia e no meio das minhas rodas repletas de amigos, mesas fartas e sexo à la carte eu ainda penso nela e na maneira como ela deve ficar feia quando está chorando.Pertenciamos a mundos diferentes, eu e ela... os cabelos dela deitaram-se num papelão sujo e era domingo quando meu universo colidiu inexoravelmente com o dela, foi numa praça no centro ouvindo uma banda que ela não conhecia, na hora a ignorância musical dela foi formidável e eu quis dizer que tinha gostado dela desde o início, desde a primeira vez que eu vi seus olhos fechados e sua falta de escrúpulos colaborarem em uma traição, eu quis explicar como me sentia em sua presença, exalando uma segurança que eu não tinha - nunca tive - só pra ela se sentir bem, pra que ela pudesse ter certeza de que eu não queria estar em nenhum outro lugar que não fosse ali com ela; lembrando sempre que nem o "ali" importava porque com ela qualquer sala ou calçadão tornava-se o melhor lugar do mundo (mesmo que estivesse frio, mal iluminado e eu estivesse com medo ainda sim estaria feliz), e qualquer situação por mais constrangedora que fosse com ela ficava bem, como a vez em que ela conheceu mamãe no susto, ou, do gato que tivemos por apenas um dia que nos arranhou e mijou nela, eu quis dizer que a desejava mesmo que ela estivesse fedendo, que queria despi-la no meio da rua e lavar suas roupas à mão, mas eu não disse, nunca disse nada do que eu queria, perto dela minhas palavras e declarações travavam e eu só sabia dizer o contrário do que eu sentia, ou, escrever coisas bonitas que ela nunca leria...E na falta de oxigênio nada carborava direito, meus cigarros pararam de se acender e eu os larguei, tudo o que eu tinha eram os meus livros e as minhas músicas pertencentes ao meu mundo de falso intelecto, imagino que a falta de livros e os projetos de músicas dela tenham sido o que sobrou em seu mundo de pseudo mediocridade.Na falta de chão eu me encontrava sozinha com guardanapos rabiscados com o nome dela, guardanapos que vinham de todos os bares da cidade, papéis rasgados que se desamassavam no meu lixo cor de laranja, tudo aquilo pra me torturar e apontar sem piedade o lugar sem volta e sem ela pra onde eu estava indo.Imaginar que não me importo com quem ela ama ou come é oficialmente uma mentira, pensar que ninguém vai ama-la tanto quanto eu continua me deixando com náuseas e lembrar que ela um dia disse que queria ficar pra sempre comigo me faz desacreditar em qualquer outra que ainda está por vir, me deixa atordoada pensar que duvidei das suas palavras e contestei o gostar dela quando na verdade tudo o que eu quis dizer era que também acreditava secretamente em um pra sempre...
M.Utida

Velas Laranjas

O amor não era o suficiente, nunca é. Uma manhã de sexta feira mudou minha vida, eu tinha dezesseis anos e sonhava em fazer cinema, não sabia o porque, sempre dava a desculpa que era por causa do meu pai, talvez ele achasse fascinante, talvez aquilo fizesse ele voltar pra minha vida, não do jeito como tinha feito antes, duas pessoas terminam no inferno porque não podem perdoar a si mesmas, nós sabiamos disso, assistimos aquele filme juntos, papai sempre achou que eu era mais matura do que alguém realmente poderia ser, foi em mil novecentos e oitenta e oito, eu tinha sete, só sete e ele me mostrou o inferno, eu lembrava das cabeças flutuando no chão, o tom cinza, queria lembrar o nome do filme, as falas porque de alguma forma o inferno ficou guardado em mim, em algum lugar distante da minha mente onde eu não conseguia alcançar, teve noites em que sonhei com aquelas cabeças, por alguns anos aquela cena não era mais um filme, eu achava que tinha imaginado tudo aquilo, mas eu lembrava de um homem que de tanto amar atravessou o inferno pra resgatar sua esposa, eu lembrava dele, ele não era minha imaginação, e eu pensava no dia em que iria amar tanto quanto aquele homem que atravessou o inferno.Aquela sexta feira mudou minha vida, o filme passou de novo e eu não tinha mais o papai pra me falar de amor, e descobri que o meu inferno tinha sido filmado há dez anos atrás. Hoje eu amo como aquele homem, eu sei disso e não é bom, percebi também que as velas laranjas que comprei ha dois meses atrás não servem pra nada, admiti pra mim mesma que comprei na esperança que ela voltasse pra mim, por muitas e muitas vezes eu entrava no quarto e sentia um cheiro desagradável, sentia vontade de acender as velas, mas não podia, eu as tinha guardado pra ela, guardei tudo pra ela, a mulher pela qual eu atravessaria o inferno. Quando ela voltasse eu as acendaria e nós ficariamos vendo as velas laranjas queimarem a noite toda, e, eu, ah eu diria palavras bonitas porque as palavras sempre foram tudo que eu tive, eu nunca soube como demonstrar nada, sempre fui um fracasso, mas com as palavras não, elas me salvavam por pouco tempo.Quando eu era pequena papai me mostrou o inferno, ele achava mesmo que eu era forte pra isso, que a censura não se aplicava a mim, ele não tinha medo de achar que eu era igual a ele em tudo, porque isso o faria menos sozinho, papai também só amou a uma mulher a vida toda e ela foi sua por muito pouco tempo, ele iria até o inferno por ela, aliás papai foi ao inferno e me levou junto, eu sou um souvenir do inferno daqueles dois, e não tenho um souvenir pra levar comigo agora que eu também estou partindo pro infrerno que é amar. Papai e eu vimos coisas diferentes no nosso inferno, não era igual ao do filme, não era tão cinzento ou sinistro, talvez fosse ainda pior porque era disfarçado. Usamos das mesmas substâncias pra esquecer das mesmas mulheres, papai nunca soube, mas elas são tão parecidas, e eu sou tão igual a ele que sei qual vai ser meu fim, viver assim predestinada dói mais, muito mais do que não saber o que o amanhã te reservou.Papai também tinha suas velas laranjas, que não eram velas, nem eram laranjas, o objeto que ele guardava para mamãe era uma velha gaita que ele me deu quando eu completei quinze anos. Eu não tinha percebido antes, mas ele só tinha feito aquilo porque ele sabia que cedo ou tarde mamãe veria a gaita comigo, em cima da minha mesa preta só como decoração - porque eu não sabia tocar, papai não tinha me ensinado, paramos de nos falar antes de dar tempo pra ele me ensinar alguma coisa que não fosse como sofrer por causa de mulher -, mamãe nunca viu a gaita e a indireta do papai não adiantou pra nada, ele ficou sem música, sem cinema, sem sua filha, mamãe nunca voltaria, nem a gaita que eu perdi na mesa do bar aonde eu conheci a minha mulher, a minha pessoa preferida no mundo inteiro, ela mesma que também nunca iria voltar e eu me perguntava quando é que eu estaria preparada pra acender essas malditas velas laranjas que ficam rindo de mim o dia todo, tão bonitas alinhadas no meio da minha luminária e meu umidificador de ar que ela nunca conheceu, que eu comprei pra ela quando ela me disse que gostava do vapor que saía dele, eu me perguntava quando elas se acenderiam sozinhas porque eu não poderia mais me forçar a esquece-la.
M.Utida

Delilah

Ela rabiscava palavras desordenadas no seu caderno porque estava esperando sua vida começar, assim como um bebê que acabara de nascer e esperava pacientemente pela sua primeira palavra, a primeira refeição, o primeiro dia de aula, o primeiro amor que o magoaria e posteriormente todos os outros que ainda viriam pra magoa-lo.Aquela menina na maior parte dos dias era solitária em todos os aspectos que um poeta menor - jovem e estúpido - poderia ser, ela ja tinha perdido as contas de quantas vezes tinha recomeçado do zero, quantas vidas ja tinham passado por ela e a maneira como a garotinha as dividia, por anos diferentes, pelas músicas que ja tocaram-na e especialmente por todos as vezes que ela ja tinha se apaixonado - mesmo achando que só tivesse sido uma - ela sabia que outras viriam, outras que também iriam partir seu coração, e rasgar suas mãos pra que ela pudesse em um ato embriagado de rebeldia escrever seus nomes - de quatro a sete letras - com o próprio sangue no espelho de casa, pois então ainda não completamente sóbria ela limparia tudo com veja vidrex e usaria um bom solvente para apagar o grande amor e o pouco ódio que sentia.Assim como um recem-nascido esperando a primeira palavra que trocaria com sua namorada - mesmo com os pulsos roxos e as mãos cortadas - ela diria que estava ótima, quase feliz porque finalmente sua vida tinha recomeçado - mesmo que medíocre e sem sorriso algum - ela diria que era de verdade, que iria se agarrar sem vontade própria à sua última chance de ter um futuro qualquer, mas no fundo a menina sabia que estaria mentindo, que pra ela futuro ja não existia mais e desejava voltar no tempo pra salvar os vestigios de alegria que ela ja teve, mas não poderia, ao invés de usar seus conhecimentos avançados de física pra construir uma máquina do tempo a menina esperava outro tipo de vida começare acabar em poucos meses, porque agora a menina dividia sua vida por amores.Assim como um ex-detento esperando sua próxima passagem pela polícia, ela esperava pela próxima oportunidade tentadora de jogar tudo pro alto, assim como um inocente espernado pra ser executado na cadeira elétrica, ela esperava ansiosamente pela próxima doença que a tomaria por completo, que a faria tossir sangue e farejar vida no corredor da morte - estreito, escuro e esperançoso - porque da segunda vez que a menina morreu ela lutou pra renascer e voltou mais forte do que era antes ou pelo menos fingia graciosamente para que ninguém se preocupasse com ela.Assim como um bebê idoso ela esperava pela primeira lágrima que cairia depois do seu reencontro e esperava paciente pela primeira refeição que faria sem interromper a si mesmo com falta de apetite, pela vida, pelo que fosse.... E no exato momento ela esperava pelo seu melhor amigo voltar, porque ele tinha saído pra satisfazer desejos carnais, a menina não ficou chateada porque ela faria o mesmo, porque eles eram muito iguais a ponto de quase se entenderem o que muitas vezes machucava, mas ela o amava demais pra ficar chateada ou pra se deixar machucar o suficiente pra não voltar nunca mais.

M.Utida

Ermitão

Me senti dividido por um pesadelo sinistro. No dia anterior me chamaram de "Don Juan" e se eu soubesse o que é ter ego, ele certamente estaria inflado, a verdade é que eu não poderia entender nem com o passar do infinito como poderia me sentir tão diminuido, tão pequenino se terceiros me consideravam tão fascinante.Meu umidificador de ar desregularizou-se e transformou meu quarto inteiro em uma sauna. De pesadelo em pesadelo eu abria os olhos e só enxergava uma névoa densa e cinzenta dançando por entre os móveis, eu sonhei que tinha me transformado em um bicho medonho, um novo tipo de inseto meio que geneticamente modificado e incapaz de se levantar da onde quer que esteja, pois não tinha olhos, nem asas, nem mãos, nem antenas, nem cabeça, nem pé, não tinha braço, nem boca, nem antena, não tinha nada.Como poderia eu - antes tão nobre e corajoso -, agora temer névoas artificiais e sentir me a parte de todos, eremita, cabeça dura, boca fechada, um silêncio constrangedor, eu - antes que não sabia me calar -, agora vivia mudo, de vez em quando cantava sozinho pra não esquecer como era minha voz. Eu galã me sentia inseto, aquele asqueroso que ela mata com o chinelo do seu pai na parede da sua casa, eu babaca carregava aquela pureza como um fardo ou uma honra, o único que nunca tinha traído ninguém, que só tinha amado uma vez, o último romântico não poderia ser nada além de um inseto eremita, sem cabeça e sem visão.Se fosse mesmo um bicho estranho, eu comeria todas elas, é claro...Comeria não pelo prazer, mas para absorver tudo o que havia de podre naquelas garotas, naquelas traidoras, elas sem coração e eu sem pé e nem cabeça, minhas antenas iriam detectar qualquer sinal de pecado ou aversão a bondade e me apontariam quem devorar, pra que depois meu inseto maluco, pegasse as patas que ele não tinha e colocasse a cabeça delas a mostra num painel de mágoas, pra provar que isso não se faz, um inseto herói, que iria torturar, matar e dilacerar todos aqueles que ja trairam e enganaram.Falaria alto e sem querer - "Que atire a primeira pedra quem nunca julgou ninguém..."Muitas pedras iam ser jogadas em cima de mim-inseto porque todo mundo se acha santo. Então meu pobre corpo gosmento iria se partir no meio e expelir todas suas visceras petrificadas, e minhas dores estariam abertas pra exposição para que todos enxergassem o mal que eu teria absorvido dos outros, minhas feridas em carne viva para que todos pudessem cheira-las e dizer que eram pequenas demais para mim. Para todos os santos que se julgaram tão melhores do que eu, que me fizeram tão desmerecedor pudessem cuspir na minha cara, na minha cara de inseto e me marcar com mais cicatrizes de amor. E do inseto morto nascia um gato preto com sete vidas na reserva que não se preocuparia com nada além da sua próxima refeição, que estaria sempre de bom humor, elegante, mascarado, um gato "Don Juan" como eu era antes de virar inseto, no sonho e na vida.Quando eu acordei, percebi que o umidificador de ar quebrou e deixou o chão do meu quarto completamente ensopado, e minhas roupas espalhads pelo chão encharcadas, levantar, tomar café, ir pra escola, não conversar com ninguém, aprender coisas inúteis, andar, andar, andar e fiquei pensando que eu na verdade não existo, sou só um inseto mascarado de ser humano...
M.Utida

Dream Brother

Era tudo tão óbvio e redundamente errado que ela se permitiu chorar na frente de qualquer um que quisesse ver aquele fato inédito acontecer, na frente ou por trás das mulheres de sua vida, por que não? Uma não se importou e a outra nem ao menos enxergou a intensidade de toda situação, todas elas a mandaram embora, cada uma de um jeito diferente, uma miss cruél, outra doce mentirosa, iguais em desgraça, idênticas em maldade.As duas, só as duas sabiam prejudicar com os seus sentimentos desbotados, uma em pouco tempo, a outra 16 anos atrasada, sempre a deixavam com um bilhete de volta pra casa, mesmo que a casa não fosse na verdade um lar, era tudo igual, todos os dias, aquela menina que antes soube sonhar ia perdendo tudo gradual e irremediavelmente, desde a fé na vida aos seus amigos dopadinhos, desde o dinheiro em coisas trivais até seu coração petrificado, antes partido por uma ou duas vacas frias, iguais em desgraça, idênticas em interesse.Uma que a alimentava por curiosidade de saber o final daquela história toda, da novela particular que ela mesma pariu, o talk show trágico cômico criado pra divertir quem quisesse ocupar seus ouvidos.Outra que ja não alimentava porra nenhuma, que tinha lavado as mãos simplesmente porque tudo o que ela nunca sentiu ja tinha passado faz tempo, tudo o que ela ja falou tinha sido esquecido, como se suas letras nunca tivessem escritas, nem pronunciadas, elas nunca foram verdadeiras. Não deveriam ter sido, mas foram frutos da ilusão do que a menina poderia ser, do que ela um dia materialmente ja teve e oferecia com tanta dedicação aquela segunda, aquela doce, doce outra garota mentirosa, de tantos mentirosos que cruzaram seu caminho.E enquanto o médico em mim ja tinha saído do meu corpo pra observar a própria vida do lado de fora, o monstro em mim se fazia cada vez mais presente, destruindo tudo o que o lado bom tinha tentado construir, e eu face direita assistia o percurso de um lunático que em parte nenhuma poderia ser eu mesma, e eu boa menina nada poderia fazer pra impedir o que a maldade em mim havia causado ultimamente, nem poderia largar a sensação de liberdade que o monstro me dava, como se o mundo fosse meu mais uma vez, e o mar me obedecesse como fazia antes e todos se curvassem diante ao meu poder de dar e tirar tudo que um dia ja amaram, e a facilidade do tal monstro pra lidar com mágoas e pessoas mal agradecidas, meu monstro preferido, a falta de piedade em mim, a extinção de bondade era tudo que eu queria, enquanto eu médico queria me livrar da doce, doce parte ainda bondosa em mim.O lado esquerdo ganhou, ele consegue andar 16 kilometros por entre gente suja e não sentir medo de morrer, o lado esquerdo acaba em tequiladas, perde horários, me faz rir superficialmente, uma risada de luxuria e não felicidade, ele é mais forte pra lidar com as duas outras, uma mentirosa que não sabe amar, outra ordinária que não sabe se comportar como quem ja amou, ambas filhas da puta, frias, calculistas, tão iguais... Merecem o amor do meu médico e o ódio do meu monstro, mas só ela, sempre ela consegue acordar o médico em mim, minhas sobras de coisas boas, de sonhos, sacrificios e esperanças, só ela poderia matar meu monstro, meus medos, minha necessidade de destruição e replantar em mim tudo que eu ja fui um dia, minha cuba libre virgem, meus cigarros que eu troquei por ela, o sabor de bala que antes eu detestava e agora me vicia, enquanto meu médico e meu monstro esperam pela vida começar de novo, eu peço à la Jeff Buckley que você não seja como aquele que me fez envelhecer tão rápido.
M.Utida

Cashback

Só comecei a pensar sexualmente nela quando assisti "cashback" pela quinta vez - duas semanas depois do único beijo que trocamos - antes de ter visto aquele filme tudo era inocente e angelical demais, pensei sobre o tempo, é inevitavel pensar no tempo quando se assiste "cashback" e pensei também nas pernas dela.
O rapaz do filme sempre quis ser pintor e as formas femininas o inspiravam, enquanto ele vagava pelo tempo congelado ia despindo e pintando todas as mulheres, eu nunca vi as pernas dela, mas o fato de eu ter visto em algum lugar que a perna é a parte que Valéria mais gosta nela mesma me fez imaginar suas pernas em tempo irreal, enquanto eu olhava pro teto ia perdendo a noção do que era ou não apropriado de se pensar, se eu soubesse pintar faria um milhão de quadros só com aquelas pernas que eu nunca vi, mas eu só sabia escrever e a falta de contato começava a limitar minhas palavras, transformando lentamente a fascinação em um desejo tosco, podre e semi-platônico.
Queria ser que nem o Ben, controlar o relógio, voltar dias atrás e parar tudo de novo, parar a música mal instrumentada que a banda tentava tocar, parar com as indiretas do nosso amável amigo em comum e impedir a brasa de queimar mais um pouco me deixando cada vez pior, principalmente pararia o tempo pra ver seus olhos - mesmo que eles estivessem fechados -, respeitosamente tiraria os seus sapatos, levantia sua calça até a altura do joelho, tocaria suas pernas recém descobertas com as pontas dos dedos (como uma criança que passa as mãos delicadamente em cima de um bolo de chantilly e tem de ser discreta pra ninguém perceber), pegaria nas suas mãos, subiria até os ombros, beijaria seu pescoço, descobriria finalmente cada linha e cada centímetro daquele corpo inteiro, cada dobra e perfume do seu interminável e sedutor conjunto de pele morena, eu saberia então descrever cada detalhe escondido na sua perfeição.
Esse raciocinio maluco me fez delirar cada vez mais nas minhas projeções, pensei que se um dia tivesse a oportunidade de fazer amor com ela, eu faria devagar, apreciaria cada curva com um tempo só nosso e naquela noite todas as coisas seria nossas, os sentimentos, as sensações, os odores e todos os elementos noturnos seriam nossos, inclusive as estrelas, a lua e os nove planetas alinhados, celebrando junto comigo aquele momento tão único, a primeira vez que Valéria me mostraria suas pernas de ouro, eu a tocaria da mesma maneira, não pela necessidade de discrição, mas pelo prazer da delicadeza.
Poderia pensar em trilhas sonoras, cores de lençóis e dias da semana pra busca-la em qualquer lugar que fosse, mas eu não precisava de nada disso, nenhum recurso sexualmente clichê ajudaria a fazer daquela noite ainda mais especial, só Valéria - linda, nua e virgem - se despindo lentamente como se aquilo fosse um ritual de passagem, como se tirar as roupas fosse mais importante e sensual do que o sexo em si, sonhava com as nossas roupas jogadas no chão, meu cinto marrom se enrrolando na calça jeans dela, pensei no dia seguinte, na cara que ela ia fazer quando acordasse, nos seus cabelos indígenas bagunçados e se ela preferia tomar café na padaria ou ali mesmo na cama de todas as cores do mundo.

M.Utida

A caneta apaixonada

Passamos vários momentos românticos, eu, minhas canetas, a escada do paço municpal e meu ipod que só tocava Feist, os pensamentos todos voltados pra Valéria, onde ela estaria agora, o que estaria fazendo, quais saudades estaria sentindo? Eu queria que ela soubesse que até sua ausência me fazia be, eu, minhas canetas e o paço municipal sentiamos a mesma coisa, pensávamos nos mesmo cabelos e no mesmo sorriso de uma mesma mulher - Valéria e seu alter ego: a semi perfeição - queria que ela soubesse sem diretamentesaber que de tanto pensar e escrever sobre ela, eu ja tinha feito meu mundo inteiro pensar em Valéria e todos meus amigos de bar e colegas de classe já a conheciam - mesmo que eu ainda não a conhecesse - minha pequena ilha, meu universo particular agora exalavam a Valéria.
O vento batia forte, eu, minhas canetas e a escada não nos importamos, a folha com o seu nome voava pelo centro, minhas canetas entristeciam e eu paciente dava a volta ao mundo pra encontra-la, acho que minha canea estava apaixonada pela folha, assim como eu estava apaixonada por Valéria, a folha caiu perto dos girassóis da prefeitura, poderia roubar algumas e guardar pra quando a visse de novo - bobagem minha, e se ela não quisesse me ver? Aí seriam outras flores estragando na minha gaveta - a boa da verdade era que se Valéria não quisesse mais me ver, a folha também não veria a minha caneta, eu perderia toda minha mais nova e delicada inspiração e meu mundo de girassóis apodreceria junto a essas folhas mal escritas na minha gaveta da vida.
Estava com meu tênis roxo que tinha levado ela a um estado de mínima euforia, combinava com a minha camiseta também roxa e de mesma tonalidade. Os pedreiros, os velhinhos, os rapazes cultos, todos que passavam pela escada me olhavam estranho, mal sabiam eles que eu estava projetando fantasiosamente meu mais novo romance de morangos, ou, no caso de Valéria meu adorável romance de doce de leite que pelo visto não saíria do papel - sorte da minha caneta que tocava sua amada folha cada vez mais, enquanto eu tocava Valéria cada vez menos - penso até que tudo isso é medo de confirmar a certeza que eu ja tinha: nenhum dos meus planos romanticamente a maravilhosos conquistaria.As pessoas sairam pela porta do teatro, esses me olharam com sorrisos, acho até que sacaram porque eu estava la, por uma questão nobre, talvez a mais nobre de todas: uma questão de amor à terceira vista. Acho mesmo que os expectadores perceberam que se fazia horas que eu estava na escada e se sentia frio ou fome valia a pena, dessa vez e por aquela mulher valeria a pena e eu esperaria o tempo que fosse, inclusive esperava por outra festa de sábado que seria sem graça, outra festa onde não poderia levá-la, preferia dividir um café, catar coquinhos, contar estrelas, ficar sem fazer nada com ela do que ir a essas festas vazias de sábado, trocaria todos meus finais de semana pra poder acompanha-la até sua casa qualquer segunda feira dessas bem comuns.
M. Utida

Doce de Leite

Era engraçado pensar em como provavelmente aquele docinho de leite marcaria um novo sentimento pra mim, pensar em como eu conseguia me meter em certas situações... No dia anterior ela sorriu pra mim ao entregar o tal docinho e foi aí que eu percebi o quanto ela era especial, o tipo de garota encantada que distribui doces pra maconheiros num buteco de centro, quis consumir aquele sorriso, beijar seus lábios indígenas com uma certa fome de tubarão, com uma delicadeza de menina que ainda tem quinze anos, desejei ter bebido menos, prestado mais atenção nas coisas que ela dizia, queria ter olhado mais vezes nos seus olhos, ter usado menos entorpecentes e ter dito o quanto a achava incrivelmente bonita e diferente de todas as outras mulheres que estavam dividindo a mesma cerveja, ouvindo a mesma banda tocar strokes naquela noite.No dia seguinte peguei o ônibus errado, acho que eu estava distraida pensando no beijo da garota encantada, não sei como e nem porque, mas ela me beijou, o tipo de beijo que eu nunca tive, sem dúvida o melhor do mundo inteiro, o mais doce e adorável beijo que só a menina baiana sabe dar, aquele beijo quase tímido que eu tentei prolongar por mais tempo do que devia, beijo que no final me fez perceber que eu ainda estava de olhos fechados sonhando com os outros que não vieram, adormeci pensando na sorte que eu tinha por tê-la beijado, mesmo que só uma vez, porque aquela única vez foi melhor do que um milhão de outros beijos com qualquer outra pessoa.Acordei no ponto final, na churrascada de sábado dos cobradores e motorista, todos com as suas camisas suadas, amassadas e azuis, tão receptivos e simpáticos dizendo que o próximo ônibus só ia sair dali a uma hora, me convidaram pra tomar suas coca-colas genéricas e comer suas carnes duras de vacas, porcos e frangos grelhados, eu obviamente não queria comer aquilo, passei uma mão atrás da nuca, meti a outra no bolso da minha calça jeans-surrada e achei o doce de leite, e ao achar o doce de leite achei também uma resposta decente pra recusar o convite dos motoristas, olhei de novo pro docinho, sorri de lado e disse que tinha algo a fazer, quis ligar pra ela e dizer que eu não me importava com o que tinha dado errado, dizer que queria vê-la de novo, que andava sonhando com o possível romantismo dela, com as luzes das velas, com tardes de filmes, cantoria a noite e com ela dançando sozinha e linda num tróleibus vazio.Não liguei, acabei mandando umas duas mensagens desejando boa tarde, ou, coisa do tipo, ela não me respondeu. No outro dia cheguei em casa e fui contar sobre ela pro meu gato, fiquei imaginando como ela acharia bobo o jeito com que eu contava tudo pra um felino, o jeito como eu dançava "here comes your man" com ele nos meus braços, não sabia nem se ela gostava de gatos, nem de pixies, nem sabia seu sobrenome, não sabia o motivo pelo qual ela era traumatizada com os "Vinicius" da vida, nem porque as pessoas a chamavam de Vandi, eu não sabia quase nada, a única coisa da qual eu tinha certeza era que ela tinha o melhor beijo do mundo, beijo doce que tinha me encantado, me curado da insônia, me dado uma mínima esperança de felicidade e uma vaga noção do que era estar apaixonada.
M. Utida