terça-feira, 19 de maio de 2009

Ermitão

Me senti dividido por um pesadelo sinistro. No dia anterior me chamaram de "Don Juan" e se eu soubesse o que é ter ego, ele certamente estaria inflado, a verdade é que eu não poderia entender nem com o passar do infinito como poderia me sentir tão diminuido, tão pequenino se terceiros me consideravam tão fascinante.Meu umidificador de ar desregularizou-se e transformou meu quarto inteiro em uma sauna. De pesadelo em pesadelo eu abria os olhos e só enxergava uma névoa densa e cinzenta dançando por entre os móveis, eu sonhei que tinha me transformado em um bicho medonho, um novo tipo de inseto meio que geneticamente modificado e incapaz de se levantar da onde quer que esteja, pois não tinha olhos, nem asas, nem mãos, nem antenas, nem cabeça, nem pé, não tinha braço, nem boca, nem antena, não tinha nada.Como poderia eu - antes tão nobre e corajoso -, agora temer névoas artificiais e sentir me a parte de todos, eremita, cabeça dura, boca fechada, um silêncio constrangedor, eu - antes que não sabia me calar -, agora vivia mudo, de vez em quando cantava sozinho pra não esquecer como era minha voz. Eu galã me sentia inseto, aquele asqueroso que ela mata com o chinelo do seu pai na parede da sua casa, eu babaca carregava aquela pureza como um fardo ou uma honra, o único que nunca tinha traído ninguém, que só tinha amado uma vez, o último romântico não poderia ser nada além de um inseto eremita, sem cabeça e sem visão.Se fosse mesmo um bicho estranho, eu comeria todas elas, é claro...Comeria não pelo prazer, mas para absorver tudo o que havia de podre naquelas garotas, naquelas traidoras, elas sem coração e eu sem pé e nem cabeça, minhas antenas iriam detectar qualquer sinal de pecado ou aversão a bondade e me apontariam quem devorar, pra que depois meu inseto maluco, pegasse as patas que ele não tinha e colocasse a cabeça delas a mostra num painel de mágoas, pra provar que isso não se faz, um inseto herói, que iria torturar, matar e dilacerar todos aqueles que ja trairam e enganaram.Falaria alto e sem querer - "Que atire a primeira pedra quem nunca julgou ninguém..."Muitas pedras iam ser jogadas em cima de mim-inseto porque todo mundo se acha santo. Então meu pobre corpo gosmento iria se partir no meio e expelir todas suas visceras petrificadas, e minhas dores estariam abertas pra exposição para que todos enxergassem o mal que eu teria absorvido dos outros, minhas feridas em carne viva para que todos pudessem cheira-las e dizer que eram pequenas demais para mim. Para todos os santos que se julgaram tão melhores do que eu, que me fizeram tão desmerecedor pudessem cuspir na minha cara, na minha cara de inseto e me marcar com mais cicatrizes de amor. E do inseto morto nascia um gato preto com sete vidas na reserva que não se preocuparia com nada além da sua próxima refeição, que estaria sempre de bom humor, elegante, mascarado, um gato "Don Juan" como eu era antes de virar inseto, no sonho e na vida.Quando eu acordei, percebi que o umidificador de ar quebrou e deixou o chão do meu quarto completamente ensopado, e minhas roupas espalhads pelo chão encharcadas, levantar, tomar café, ir pra escola, não conversar com ninguém, aprender coisas inúteis, andar, andar, andar e fiquei pensando que eu na verdade não existo, sou só um inseto mascarado de ser humano...
M.Utida

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