terça-feira, 19 de maio de 2009

Velas Laranjas

O amor não era o suficiente, nunca é. Uma manhã de sexta feira mudou minha vida, eu tinha dezesseis anos e sonhava em fazer cinema, não sabia o porque, sempre dava a desculpa que era por causa do meu pai, talvez ele achasse fascinante, talvez aquilo fizesse ele voltar pra minha vida, não do jeito como tinha feito antes, duas pessoas terminam no inferno porque não podem perdoar a si mesmas, nós sabiamos disso, assistimos aquele filme juntos, papai sempre achou que eu era mais matura do que alguém realmente poderia ser, foi em mil novecentos e oitenta e oito, eu tinha sete, só sete e ele me mostrou o inferno, eu lembrava das cabeças flutuando no chão, o tom cinza, queria lembrar o nome do filme, as falas porque de alguma forma o inferno ficou guardado em mim, em algum lugar distante da minha mente onde eu não conseguia alcançar, teve noites em que sonhei com aquelas cabeças, por alguns anos aquela cena não era mais um filme, eu achava que tinha imaginado tudo aquilo, mas eu lembrava de um homem que de tanto amar atravessou o inferno pra resgatar sua esposa, eu lembrava dele, ele não era minha imaginação, e eu pensava no dia em que iria amar tanto quanto aquele homem que atravessou o inferno.Aquela sexta feira mudou minha vida, o filme passou de novo e eu não tinha mais o papai pra me falar de amor, e descobri que o meu inferno tinha sido filmado há dez anos atrás. Hoje eu amo como aquele homem, eu sei disso e não é bom, percebi também que as velas laranjas que comprei ha dois meses atrás não servem pra nada, admiti pra mim mesma que comprei na esperança que ela voltasse pra mim, por muitas e muitas vezes eu entrava no quarto e sentia um cheiro desagradável, sentia vontade de acender as velas, mas não podia, eu as tinha guardado pra ela, guardei tudo pra ela, a mulher pela qual eu atravessaria o inferno. Quando ela voltasse eu as acendaria e nós ficariamos vendo as velas laranjas queimarem a noite toda, e, eu, ah eu diria palavras bonitas porque as palavras sempre foram tudo que eu tive, eu nunca soube como demonstrar nada, sempre fui um fracasso, mas com as palavras não, elas me salvavam por pouco tempo.Quando eu era pequena papai me mostrou o inferno, ele achava mesmo que eu era forte pra isso, que a censura não se aplicava a mim, ele não tinha medo de achar que eu era igual a ele em tudo, porque isso o faria menos sozinho, papai também só amou a uma mulher a vida toda e ela foi sua por muito pouco tempo, ele iria até o inferno por ela, aliás papai foi ao inferno e me levou junto, eu sou um souvenir do inferno daqueles dois, e não tenho um souvenir pra levar comigo agora que eu também estou partindo pro infrerno que é amar. Papai e eu vimos coisas diferentes no nosso inferno, não era igual ao do filme, não era tão cinzento ou sinistro, talvez fosse ainda pior porque era disfarçado. Usamos das mesmas substâncias pra esquecer das mesmas mulheres, papai nunca soube, mas elas são tão parecidas, e eu sou tão igual a ele que sei qual vai ser meu fim, viver assim predestinada dói mais, muito mais do que não saber o que o amanhã te reservou.Papai também tinha suas velas laranjas, que não eram velas, nem eram laranjas, o objeto que ele guardava para mamãe era uma velha gaita que ele me deu quando eu completei quinze anos. Eu não tinha percebido antes, mas ele só tinha feito aquilo porque ele sabia que cedo ou tarde mamãe veria a gaita comigo, em cima da minha mesa preta só como decoração - porque eu não sabia tocar, papai não tinha me ensinado, paramos de nos falar antes de dar tempo pra ele me ensinar alguma coisa que não fosse como sofrer por causa de mulher -, mamãe nunca viu a gaita e a indireta do papai não adiantou pra nada, ele ficou sem música, sem cinema, sem sua filha, mamãe nunca voltaria, nem a gaita que eu perdi na mesa do bar aonde eu conheci a minha mulher, a minha pessoa preferida no mundo inteiro, ela mesma que também nunca iria voltar e eu me perguntava quando é que eu estaria preparada pra acender essas malditas velas laranjas que ficam rindo de mim o dia todo, tão bonitas alinhadas no meio da minha luminária e meu umidificador de ar que ela nunca conheceu, que eu comprei pra ela quando ela me disse que gostava do vapor que saía dele, eu me perguntava quando elas se acenderiam sozinhas porque eu não poderia mais me forçar a esquece-la.
M.Utida

Nenhum comentário:

Postar um comentário